30 antes dos 30: Eyes Wide Shut

Eyes Wide Shut, último filme de Stanley Kubrick

Tom Cruise e Nicole Kidman são um dos casais mais mediáticos do momento. Estamos em 1999, quando estreia Eyes Wide Shut, envolto em grande curiosidade. Em parte, o projeto já levava 30 anos de planos e preparação nas mãos do lendário Stanley Kubrick. Por outro lado, a imprensa cor-de-rosa especulava, há meses, sobre a relação dos protagonistas do filme.

A expectativa rendeu a Eyes Wide Shut um sucesso inicial, que o tempo parece querer ignorar. Êxito nas bilheteiras ou não, a verdade é que o filme está longe de ser uma obra-prima. A pergunta que importa fazer é: seria possível chegar lá?

Tom Cruise e Nicole Kidman dão vida ao médico, dr. Bill Harford, e à sua esposa, Alice – uma família que vive bem, na New York dos anos 1990, com uma filha pequena e boas relações sociais. A paz conjugal é interrompida quando Alice questiona a confiança cega do marido na sua fidelidade. Bill procura vingar os ciúmes provocados por Alice, que lhe conta uma fantasia com um oficial da Marinha que vira, certa vez, num hotel de Cape Cod. A confissão lança-o numa cruzada obsessiva durante todo o filme, que culmina com a sua presença num ritual sexual de uma sociedade secreta.

O cunho de Stanley Kubrick neste projeto podia certificá-lo como uma obra-prima, de imediato. Mas falamos de um realizador perfeccionista que acreditava que, ao levar ao cansaço extremo os seus actores, fazendo-os repetir as cenas vezes sem conta, alcançaria uma espontaneidade, um desempenho mais puro. E essa obsessão parece ter prejudicado o resultado final. Foi o que aconteceu com Tom Cruise, que se entregou ao projecto com uma evidente necessidade de aprovação de Kubrick.

O estilo pouco convencional dos trabalhos parece ter resultado numa interpretação fraca de Cruise, que acaba por passar duas horas e meia de filme com uma cara de verdadeira incompreensão. Parece ficar perplexo quando Alice lhe conta a fantasia sexual; quando a filha de um paciente que acaba de morrer lhe confessa o seu amor perante o corpo; quando encontra o antigo colega de faculdade, agora pianista; quando decide deixar a prostituta Domino sem consumar o propósito do encontro; quando o apanham infiltrado na mansão da seita sexual… Tom Cruise passa todo o filme com ar de espanto. Enquanto isso, questionamo-nos onde andará Nicole Kidman em quase metade da trama, ela que até parece ter aqui uma interpretação mais viva e energética do que em muitos papéis dos 20 anos seguintes.

Diz-se que o realizador terá feito com que Cruise repetisse 95 vezes uma cena de entrada por uma porta. Mas o actor estaria dedicado a aguentar o método de trabalho de Kubrick. Uma das maiores provações terá sido a duração das filmagens, uma vez que Eyes Wide Shut foi feito entre 1996 e 1998, durante 15 meses. (Acabaria por entrar para os recordes do Guinness como o filme com gravações ininterruptas mais longo de sempre.)

Durante este período, o jogo psicológico arquitectado por Kubrick foi constante. A ideia de contratar um casal na vida real para interpretar o duo protagonista do filme teria como intenção transpor para o grande ecrã a dinâmica emocional de um casamento verdadeiro. Kubrick fez com que Kidman e Cruise ficassem a dormir no quarto das personagens e mimetizassem alguns dos seus comportamentos familiares.

Para intensificar a tensão já sentida, Kubrick proibiu Tom Cruise de estar presente nos seis dias (seguidos) em que Nicole Kidman filmou a cena de sexo com o oficial da Marinha (que resultaria em apenas um minuto de filme). E ordenou a Kidman que não contasse ao marido o que se passara durante esses dias de trabalho. A cena em causa aparece como produto da mente de Bill, que imagina Alice na sua fantasia. Uma inception de imaginações, a testar os limites dos actores e a jogar com emoções reais. Tom Cruise viria a desenvolver uma úlcera durante as filmagens de Eyes Wide Shut, soube-se mais tarde, e não é impossível relacionar as estratégias de Kubrick com o diagnóstico médico.

Kubrick foi mesmo um perfeccionista. Por causa disso, Eyes Wide Shut está pejado de interpretações boas mas curtas, que acrescentam intensidade à história mas deixam o espectador à espera de mais. É o caso de Alan Cumming, que dá vida a um recepcionista de hotel encantado com o dr. Bill. (De resto, são várias as personagens que se revelam rendidas ao médico, tornando ainda mais penosa a sua cruzada falhada.)

Os detalhes não são descurados, claro. A New York onde a história acontece foi recriada, rua a rua, num cenário no Reino Unido. Diz-se que Kubrick terá mandado tirar as medidas à cidade original para obter uma recriação fiel, além de terem sido filmados alguns cenários nos Estados Unidos, aos quais os actores foram adicionados posteriormente. As luzes vermelhas das árvores de Natal adicionam intensidade a certas cenas. A senha de entrada na casa onde tem lugar o ritual secreto é fidelio, ópera de Beethoven mas também palavra em latim para “fiel”. As máscaras venezianas usadas pelos membros da sociedade apresentam caras de suspense ou poder, consoante o seu papel no enredo. Quando Cruise se refugia num café depois de perceber que está a ser seguido, o jornal que folheia tem, como manchete, a saudação “lucky to be alive”.

Alguns pormenores são quase demasiado óbvios para este filme, que quer mas não chega a ser um thriller. É verdade que a banda sonora inclui cânticos teatrais de uma liturgia da Igreja Ortodoxa romena e os acordes dramáticos do piano da “Ricercata” do húngaro György Ligeti, mas também conta com o descontraído “Baby did a bad bad thing” de Chris Isaak a ilustrar a dinâmica entre Bill e Alice.

Mas não, Eyes Wide Open nunca poderia ser uma obra-prima porque trata de algumas das mais cruas emoções que surgem entre pessoas. E essas não são as histórias preferidas do grande público, porque o cinema tem de causar empatia, catarse e reconciliação antes que as luzes voltem a acender-se. Não é assim?

Eyes Wide Shut não sossega mentes nem dá respostas. Fica por compreender o envolvimento de Alice no ritual sexual testemunhado por Bill e se é verdadeira a explicação de Victor Ziegler (Sidney Pollack) sobre os contornos daquela seita.

Perto de fazer 20 anos, Eyes Wide Shut não terá sido o melhor filme para conhecer Kubrick. Dado que foi o último (o realizador morreu poucos dias depois de entregar a primeira versão ao estúdio), talvez a descoberta do realizador se faça agora num recuo ao passado. Seguir-se-ão as obras-primas (2001: A Space Odyssey, A Clockwork Orange e The Shining), que também estão na lista e vão, certamente, confirmar a conclusão provisória: Kubrick foi, como todos os grandes, uma figura com muitas idiossincrasias. Por causa ou apesar delas, terá sido um dos maiores realizadores dos nossos tempos.

Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick (1999)

Artigo publicado também em Sapo Mag

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