Carta aberta aos meus sentimentos

O Jorge Silva Melo morreu.

Morreu com vontade de ter dançado muito mais na vida, pela vida fora. Contou-o ao Bernardo Mendonça no podcast Beleza das Pequenas Coisas, que só por si já é um nome sugestivo.

Jorge Silva Melo morreu com vontade de ter amado mais. Contou-o, pareceu-me, sem pena na voz. Ou talvez seja a minha interpretação a recusar tamanho arrependimento num septuagenário. Que ninguém merece ver-se no fim da vida e sentir tê-la desperdiçado nos assuntos do coração.

Jorge Silva Melo morreu e, antes de morrer, gostava de ter dado mais vida aos seus sentimentos. Que devia ter passado mais tempo na casa da vizinha, uma vizinha metafórica para dizer que a sua vida foi sempre de trabalho e que devia ter sido, em parte, vida.

Recusem a pena, ele falava com laivos de orgulho na voz. Recuso-a eu, que sei o que construiu pela vida fora, mesmo que sem essa outra vida.

Passa-me depois um título pelos olhos: “Os portugueses não têm muita facilidade em expressar sentimentos. Aquela coisa do ‘eu amo-te, ‘obrigado’, ‘desculpa’”. Foi o Branko que o disse ao Expresso a propósito do novo disco. Chamou-lhe OBG, em jeito de agradecimento. E é bem verdade, fraqueja-se-nos a firmeza quando podemos abrir o coração e não vale imaginar um pai austero neste papel. É um mal geral.

Um mal, sim. Não porque a poupança na oralização de sentimentos seja a doença do século, mas porque o seu inverso é tão poderoso que o contrário só podia recair no extremo oposto.

Experimentem. Com medo, experimentem.

Há uns anos, Mónica Calle interpretava Os Meus Sentimentos de Dulce Maria Cardoso. E começava a sessão (em que estava sempre sozinha em palco) por pedir um abraço a alguém do público. Eu que fujo de espectáculos interativos, encolhi-me na cadeira e, como todos, sem saber se o pedido fazia parte da performance ou não.

Com o passar dos anos, lembro-me muitas vezes desse pedido. Decidi entretanto que era genuíno. Porque falar de sentimentos (e a histórica era tão profícua quanto violenta em sentimentos) é esventrar o tal portuguesismo que temos cá dentro como rolha. É o tal abrir o coração, rasgar, melhor dizendo. É ser vulnerável, tão vulnerável que nos sentimentos pequenos e frios e só precisamos de um abraço caloroso para nos devolver o batimento cardíaco.

Lembro-me perfeitamente que o único estranho que acreditou logo na franqueza do pedido foi Albano Jerónimo. Saiu do lugar, subiu ao palco e entregou, sem pedir nada em troca, o abraço caloroso que era pedido.

Talvez os artistas saibam praticar mais esse hábito de auscultar os seus sentimentos.

É um exercício duro, mas a literatura de auto-ajuda diz que um hábito se enraiza pela repetição.

Experimentem.

Comecei a fazê-lo.

Obrigada. Obrigada por me ouvires. Obrigada por teres vindo, foi bom ver-te. Obrigada por fazeres parte da minha vida. Obrigada por me veres.

Amo-te. Mesmo que tremam as pernas e o corpo todo, porra, amo-te.

Desculpa…

É tremendo o alcance das palavras, mesmo estas que, por vezes, parecem doer ao sair. Não é habitual dizê-las e menos ainda ouvi-las, por isso, correndo o risco de se parecer um bocadinho estranho, vale a pena experimentar.

Podia dizer que, aquilo que damos ao universo, acaba por regressar a nós. Mas e se não regressar? Pendo para a ideia de que bastará dar voz aos sentimentos para saber que lhes demos vida, aos 70 anos e tal, olhando cada vez mais de perto para o fim.

E se esses sentimentos nos fizeram dançar, mesmo que sozinhos, não será com pena mas com plenitude que vamos poder dizer que vivemos.