O baloiço na cerejeira (notas sobre gentrificação)

Filipa Moreno, 2023, Olympus OM10

Já tinha ferrugem a espreitar pela tinta branca. Aquele era o portão menos intransponível da história dos portões. Assim tinha de ser, para se deixar abrir pelas nossas mãos pequenas, de criança, e pelas mãos das peixeiras que ainda ali iam vender o seu peixe. Unhas escuras, saias rodadas e acho que não estou a imaginar uma cesta de verga a transportar a mercadoria. Desciam os degrauzinhos de pedra, ladeados pelas roseiras altas, de onde só nasciam rosas de vez em quando. E tocavam à campainha, num botão que ainda vejo à frente dos meus olhos, redondo e amarelado. Oiço-lhe o toque agudo, estridente, de campainha antiga.

Reconheci a estrada, onde bastava encostar o Fiat para estacionar. Mas o portão já não era o mesmo e estavam a instalar um intercomunicador. A campainha já não existe, e as roseiras? Terão cortado as roseiras?

O telhado, que não consigo rever na memória, também já não era o mesmo. Foi trocado por umas modernas linhas retas. Azul qualquer coisa, que estas cores vêm sempre com um nome composto. Verde jade, cinza neblina, azul céu.

Já não existe a mesa redonda, de madeira preta, na sala de jantar. E a cadeira de rattan no canto, onde me escondia. O chão alcatifado foi arrancado e as roseiras também, de certeza.

Da cave, já não se ouve aquela música sem vozes envolta na nuvem de fumo. Já não existem discos de jazz alinhados nas paredes.

Já não encontro maços nas estantes altas da salinha. E aquele sofá onde me davam colo também já lá não está.

As estátuas e as pratas foram desaparecendo com o tempo, de cima dos móveis com desenhos dourados. Os sofás… Eram os sofás mais banais do mundo, mas parece-me agora que não existem outros tão especiais.

O quarto dos gatos, mesmo quando já não havia gatos, já lá não está.

No topo da escada cor de barro, ora achava que era uma princesa na torre do seu castelo, ora sentia um desperdício ninguém ter colocado no jardim a mesma piscina dos vizinhos (risos de criança incluídos).

A relva talvez seja a mesma. Ou talvez tenham mesmo construído uma piscina. Será que a cerejeira ainda existe? As cerejas eram pequenas, amargas, vermelho vivo, mas provava-as sempre, na esperança de se terem tornado doces, com a idade.

O baloiço, que a minha mãe fez com as suas mãos, não está lá. Cordas apertadas, assento de madeira, naquele tronco mais deitado.

Eles já lá não estão – embora tenha sonhado e achado que sim.

Como é que um sítio se torna casa? Não casa de paredes, mas casa de memórias.

Como é que uma casa deixa de existir? Não nas memórias, mas na rua que ainda reconheço.

Queria resgatar a cerejeira e enxertá-la noutro sítio, onde as memórias pegassem e as cerejas se tornassem doces.