30 antes dos 30: Sen to Chihiro no Kamikakushi

Chihiro e Haku, personagens de Spirited Away

Está entre os melhores filmes de animação de sempre e tem o recorde de bilheteira aquando da sua estreia no Japão: Sen to Chihiro no Kamikakushi, de 2001, é possivelmente a obra-prima de Hayao Miyazaki.

Tudo começou quando Miyazaki se apercebeu de uma falta de histórias com personagens femininas fortes, feitas para os mais novos. Inspirado por meninas amigas da família, apercebeu-se de que os temas de revistas japonesas de manga iam pouco além de histórias românticas. Daí nasceu Chihiro, a heroína de 10 anos que se vê forçada a mudar de cidade por vontade dos pais, deixando para trás os amigos. A família vai parar a um mundo espiritual quando entra num parque de diversões aparentemente abandonado. Os pais da menina são transformados em porcos. Chihiro escapa a semelhante sorte porque encontra Haku, que a aconselha a procurar trabalho, um trabalho que escraviza praticamente todos os habitantes daquele universo paralelo. A missão de Chihiro é libertar os pais do jugo de Yubaba, a feiticeira-avó que rege aquele mundo.

Mais do que ter sido criada para crianças – o público-alvo de Sen to Chihiro no Kamikakushi (Spirited Away, na versão em inglês) foi mesmo meninas pré-adolescentes –, a história parece desenrolar-se como uma brincadeira de miúdos. O mundo de Yubaba e Haku vai sendo criado à medida da imaginação, com total ausência de restrições. Ali, figuras humanas convivem com animais falantes, existem bebés de dimensões desproporcionais, bruxas e dragões preenchem o enredo…

Spirited Away ultrapassou largamente o sucesso no seu país de origem. Tornou-se, rapidamente, um filme de culto e percebe-se, pelo menos, uma das razões para esse estatuto. Está tudo na mestria de Hayao Miyazaki, no facto de ter decidido que o filme seria todo desenhado à mão. Os meios artificiais foram deixados de lado e essa escolha é tão mais interessante quando se vê que todas as cenas estão repletas de um sem-número de pormenores que enriquecem a experiência do espectador. A qualidade visual do filme é impressionante, como se vê particularmente em momentos como quando Chihiro aceita bolos de arroz trazidos por Haku e os devora, escondida atrás de um jardim de folhas e flores vibrantes.

Spirited Away é um filme feito com calma. Vários silêncios dão espaço para que a história respire e deixam que reparemos em cada um daqueles pormenores. A magia está também nos muitos símbolos escondidos. Caracteres japoneses surgem nas paredes ou nas montras dos restaurantes do parque de diversões abandonado. E o próprio nome de Chihiro, que significa algo como “mil buscas”, demonstra a perda de identidade que acontece quando Yubaba a rebatiza como Sen. É que Sen significa apenas “mil” e é como se a protagonista perdesse o espírito de procura – ela que tenta encontrar os seus pais. De resto, a mudança facilita o abandono da vida anterior, caso o nome de origem seja esquecido.

Claro que a dimensão simbólica do filme não está tão ao alcance do mundo ocidental. Conhecer a cultura e dominar a língua nipónicas permitiria compreender muito melhor Spirited Away e há muito que fica por perceber. Mas algumas metáforas são universais. Os pais da menina, por exemplo, são transformados em porcos quando revelam ambição e gula. Os trabalhos pesados a que estão condenadas as criaturas de Yubaba demonstram a força das personagens, a sua capacidade de ultrapassar adversidades, como acontece a Chihiro. Há ainda um conjunto de referências a valores presados pelos japoneses e a caricatura de um estilo de vida muito próprio, da importância da família às crenças espirituais.

Talvez por estarmos perante uma cultura diferente em tantos aspectos, o mundo ocidental acabou por comparar as criações da Disney com as do Studio Ghibli (que assina Spirited Away e vários outros filmes de Miyazaki). A comparação parece inevitável, sobretudo depois do sucesso que Spirited Away alcançou em todo o mundo, tendo recebido o Óscar de Melhor Filme de Animação, além de um punhado de outros prémios reputados.

Algumas referências a este filme apontam que a Disney e a Pixar tocam o coração, mas o Studio Ghibli toca a alma. Essas mesmas referências parecem cair na comparação fácil que dá primazia à obra da empresa japonesa, como se fosse mais pura por ser menos comercial. Contudo, da mesma forma que é possível traçar um padrão nas histórias de Miyazaki (na construção da história e das mesmas personagens-tipo), compare-se os pilares dos dois gigantes do cinema.

A Disney/Pixar tem apresentado contos-de-fadas, histórias de desafios pessoais, lutas pela afirmação cultural com figuras que evoluíram muito desde a personagem feminina do tipo Cinderela – veja-se a guerreira Mulan. Com a chancela do Studio Ghibli, Miyazaki queria construir uma heroína que fosse exemplo de uma conquista pessoal para meninas de 10 anos. Mas acaba por fazer de Chihiro a mesma protagonista apaixonada por uma figura masculina que o culto em torno deste filme tanto parece criticar no universo Disney. “Can’t beat the power of love”, diz-se a certa altura em Spirited Away, o que, sendo uma mensagem positiva, acaba por consagrar a nova missão da protagonista feminina: libertar Haku.

Sem muito conhecer da obra do Studio Ghibli e o seu trabalho com Hayao Miyazaki, a Disney/Pixar parece ter já dado mais passos nas histórias de amor não romântico, como Up (2009) ou Frozen (2013), e na criação de personagens femininas independentes, como Pocahontas.

Miyazaki põe em Spirited Away um conjunto óbvio de críticas à sociedade do consumo. Mas, em Despicable Me (2010), existe uma crítica social também muito vincada, quando a placa que identifica o Banco do Mal tem, em letras mais pequenas, a designação “anteriormente Lehman Brothers”.

E, no que diz respeito à representação cultural, é claro que Spirited Away é exímio a transpor a cultura japonesa para dentro da história e das ilustrações, mas Coco (2017) também o faz com as tradições e valores mexicanos e conseguiu tocar corações e almas e tudo o que se pode imaginar que existe.

É vã a tentativa de sobrepor um estúdio ao outro. Registe-se apenas que Miyazaki consegue fazer em Spirited Away uma caracterização rara no cinema de animação: a apresentação de personagens que não são inteiramente vilões. Aqui, existe sempre a esperança de um outro lado naqueles que representam o lado mais negro e essa é uma conquista face à habitual catarse dos vilões, rendidos por fim às forças do bem. A lição é mais subtil e essa foi uma intenção que o realizador confessou ter.

Sen to Chihiro no Kamikakushi, Hayao Miyazaki (2001)

Artigo publicado também em Sapo Mag

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