30 antes dos 30: A Fish Called Wanda

Jamie Lee Curtis, John Cleese e Kevin Kline em A Fish Called Wanda (1988)

“You see, Wanda, we’re all terrified of embarrassment. That’s why we’re so… dead.”

Foram precisos alguns anos até que, da cabeça de John Cleese, saísse a ideia para este filme em forma de guião. A Fish Called Wanda chegou em 1988, realizado por Charles Crichton. A história, essa, repete a fórmula vencedora que os Monty Python exploraram até à exaustão – e que funciona sempre.

Quando Archie Leach (John Cleese) confessa a Wanda (Jamie Lee Curtis) que os britânicos têm um medo terrível de se encontrarem numa situação embaraçosa, é ele mesmo apanhado a despir-se, com as cuecas na cabeça em rodopios, enquanto declama um poema russo como ritual de sedução. A capacidade de nos rirmos de nós mesmos, do quão ridículos conseguimos ser, é um dos segredos daquela fórmula. E é uma das condições com que John Cleese parece ter baptizado cada uma das personagens deste filme.

Temos o suposto vilão, Otto (Kevin Kline, que ganhou um Oscar com este papel), que se apresenta como um intelectual cultíssimo que lê Nietzsche e que se torna perigoso quando alguém aponta à sua estupidez cómica. Wanda corrige-lhe algumas certezas: o London Underground não é um movimento político, por exemplo.

Temos Ken (Michael Palin), o ajudante do líder daquela esquadrilha, Georges (Tom Georgeson), que se planeia um roubo de jóias. Ken recebeu do criador a bênção de ter dois traços marcantes: além de ter uma gaguez cerrada, é apaixonado por animais. A lembrar O Parvo, de Gil Vicente, será ele a chave do desfecho desta história, num momento em que Jamie Lee Curtis serpenteia pelo enredo, seduzindo aqui e ali, com o puro intuito de safar-se com as jóias roubadas. Ken – que guarda em segredo o paradeiro das jóias – perde o controlo quando Otto o ameaça da forma mais terrível que poderia imaginar: um por um até chegar ao peixe preto de nome Wanda, Otto vai deglutindo os habitantes do aquário a quem Ken dedica a sua devoção. Ken alcança a vingança ao passar por cima de Otto com um rolo compressor a espalmá-lo numa placa de cimento fresco – exactamente como se esta cena pertencesse a um desenho animado. Mas Ken não pertence ao filão violento da esquadrilha, aliás, a sua angústia interior passa pelo dilema de liquidar a única testemunha que pode confirmar a culpa de Georges em tribunal. Por isso, vêmo-lo ao longo do filme a orquestrar acidentes aparentes que tratem de despachar a senhora. Só que as primeiras duas tentativas acabam com a morte de dois dos seus três Yorkshire Terrier, para horror da personagem de Michael Palin.

Temos ainda a própria Wanda, com Jamie Lee Curtis a trocar de pele conforme os diferentes momentos do filme com vista a cumprir o seu objectivo único de passar a perna a todos os elementos masculinos do elenco. Namora com Georges, atraiçoa-o com Otto e seduz Archie. Os últimos momentos do filme revelam essa natureza ambiciosa, além de conterem uma das cenas mais interessantes e cómicas. Não se trata daquela veia cómica física, com actores a tropeçarem em si mesmos. Em vez disso, existe um bilhete de avião que salta entre as mãos de Otto, Ken e Archie. Otto quer evitar que Wanda fique com as jóias, Archie procura nessa fuga a sua liberdade.

É que Archie é o advogado que vive uma vida aborrecida, como ele mesmo descreve, com uma família muito britânica, amigos que é como se fossem já cadáveres. Ser inglês é assim mesmo, diz ele, opondo nesta história as personagens britânicas às americanas e deixando que as diferenças culturais tratem dessa marca caricata do filme. Archie rompe com essa vida quando se deixa apanhar por Wanda, que finge ser uma estudante de Direito para se aproximar dele e obter informações sobre o processo de Georges.

É nestes encontros que Archie se rebela, quase renegando às obrigações inerentes à sua nacionalidade, e se liberta das roupas, trauteando por uma casa emprestada enquanto seduz Wanda com a sua capacidade de falar italiano e russo, apenas para ser surpreendido pela família que iria hospedar-se aí. Só John Cleese poderia dar vida a este Archie e vê-lo, assim como Michael Palin, é ter a certeza de que A Fish Called Wanda poderia ser um conjunto de sketches de Monty Python.

Esta capacidade de pegar no que há de ridículo na natureza humana e transformá-lo em quadros cómicos onde nos conseguimos rever é libertadora. A prová-lo está a história de um homem dinamarquês que morreu ao assistir ao filme, no cinema. O homem, cujo filho conta que teve a ideia de pedir à família que colocasse talos de couve-flor nas narinas um dia ao jantar – como Otto coloca batatas fritas no nariz de Ken – riu-se tanto que teve um ataque cardíaco.

A forma como este elenco agarra as suas personagens é a maior riqueza de A Fish Called Wanda, que ascendeu ao nível de clássico e é considerado por muitos um dos melhores filmes de sempre. Em todos os pormenores, vemos que há uma inteligência subtil na construção destas personagens, que, de resto, foi saudada por Robert McKee.

A transformação de Archie acontece quando rompe com a sua fastidiosa existência, ganhando uma faceta de par romântico credível (até aí, o contraste entre ele e Jamie Lee Curtis era intencionalmente cómico). John Cleese foi inspirar-se em Cary Grant para criar Archie, uma vez que o nome daquele actor, quando nasceu, justamente em Inglaterra, em 1904, era Archibald Alexander Leach. E quem melhor para personificar um galã do que Cary Grant?

Este pormenor nunca fica patente no filme, claro. Conhecê-lo confirma a suspeita de que o guião de John Cleese é intrincado, repleto de uma comédia cerebral.

A Fish Called Wanda. Charles Crichton (1988)