30 antes dos 30: Kill Bill: Vol. 2

Uma Thurman e David Carradine em Kill Bill, Vol. 2

Depois do Vol. 1, a segunda parte do filme de acção que Quentin Tarantino se propôs fazer para poder comparar-se aos melhores realizadores do seu tempo.

“I’m the deadliest woman in the world – but right now, I’m just scared shitless about my baby.”

A vingança de The Bride (Uma Thurman) continua em Kill Bill: Vol. 2 (2004). As duas partes foram gravadas em simultâneo e separadas para exibição nos cinemas. Não se trata, por isso, de uma sequela e custa pensar que passaram alguns meses para que o público pudesse ter completado a história da morte de Bill, quando, por aqui, passou apenas uma semana. Uma semana em que pairou no ar a última frase do primeiro filme: Bill pergunta (e só lhe ouvimos a voz) se A Noiva saberá que a sua filha está viva, que sobreviveu ao massacre dos Deadly Viper Assassination Squad e aos quatro anos em que a mãe esteve em coma.

Quentin Tarantino deixa esta frase no ar para acrescentar voracidade à sede de vingança de Uma Thurman. É verdade que a personagem revela uma serenidade muito oriental – afinal, ela estudou pacientemente com o mestre Pai Mei (Chia-Hui Liu), conquistando primeiro a sua tolerância e depois a confiança que o levou a ensinar-lhe o golpe letal que nunca partilhou com o antigo aprendiz, Bill.

Alguns capítulos deste Vol. 2 mostram-nos essa jornada, desde que Bill deixou A Noiva na montanha onde Pai Mei vive até ao fim da sua formação, passando por longos e dolorosos treinos em que lhe é ensinado a partir uma barra de madeira apenas a 10 cm de distância da sua mão.

A lista da vingança d’A Noiva continua, depois de riscar os nomes de Vernita Green (Vivica A. Fox) e O-Ren Ishii (Lucy Liu), no Vol. 1. Segue-se Budd (Michael Madsen), nome de código: Sidewinder.

Budd é irmão de Bill e aparece-nos como um alcoólico solitário, que vive sozinho numa caravana no meio do nada. Contudo, somos surpreendidos pela ingenuidade d’A Noiva, quando abre a porta da caravana e permite que Budd a desarme de imediato. Para surpresa de todos, Tarantino tira-nos já o tapete, mal começa a segunda parte! A protagonista – feita guerreira mítica, temida pelos seus inimigos – deixa-se deter e enterrar viva num caixão de madeira.

Falta-nos o ar durante aquelas cenas, em que Tarantino aperta o plano, para sufoco do espectador. Thurman está ali, numa caixa de madeira, quando a história faz um desvio para o capítulo dos ensinamentos de Pai Mei. Quando regressarmos ao caixão, vamos perceber que A Noiva parte a madeira e consegue escavar a sepultura, para regressar ao mundo dos vivos.

Budd não morre às mãos d’A Noiva, mas sim de Elle Driver (Daryl Hannah), ou California Mountain Snake. O irmão de Bill promete vender a espada Hanzo d’A Noiva à última dos vipers. Com uma pala a tapar o olho que já não tem (em modo Bond girl), Elle Driver encontra-se com Budd e entrega-lhe uma mala com dinheiro. Para ironia da história, escondida no meio das notas está uma black mamba, que surpreende o irmão de Bill. O ataque é letal.

Quando Thurman reaparece, as duas últimas mulheres do gangue confrontam-se naquele espaço apertado, obrigando Tarantino a explorar os seus ângulos de filmagem menos convencionais. É uma cena clássica de acção mas a atenção está toda na black mamba que ainda está à solta na caravana.

A vingança serve-se finalmente com um toque daquele humor refinado de Tarantino e que os actores interpretam de forma exemplar: é que a Noiva arranca o outro olho de Elle Driver e esmaga-o com o pé descalço. Driver cai por cima dos destroços, totalmente desorientada e frenética, enquanto continua a prometer uma morte dolorosa à adversária.

Por fim, Bill (David Carradine). Entrámos num cenário de influência mexicana e Uma Thurman traja agora com uma saia azul, comprida, nada propícia ao kung fu e isso já nos diz que A Noiva não vai lutar. Ao entrar na casa de Bill, encontra um cenário inesperado: o antigo amante brinca com uma menina. Ela tem pouco mais de quatro anos e segura uma pistola de plástico. Refere-se à mulher como mãe e, então, A Noiva percebe que a sua filha sobreviveu. As lágrimas escorrem dos olhos muito azuis de Uma Thurman.

A segunda parte de Kill Bill cede uma parte do tom de acção à emoção. É mais demorada e menos ágil. Também A Noiva, cujo nome nos é revelado (Beatrix Kiddo), parece trocar a raiva pela sensatez neste último confronto.

As duas personagens conversam, trocam perguntas para sarar as feridas e saciar a curiosidade dos espectadores.

Mas a paz dura pouco. Em vez de um duelo de espada, Kiddo aplica sobre Bill o golpe que aprendeu com Pai Mei – a técnica em que os dedos de uma mão dão cinco toques no coração rápidos no peito do adversário. A morte é certa e chegará em poucos minutos.

Nos dois volumes de Kill Bill, vemos um realizador em êxtase com o trabalho alcançado. Os detalhes deste grande filme, divido em dois, alinham-se de forma natural. O resultado é um bonito invólucro, uma mistura de géneros cinematográficos, pintados com a capacidade única de Tarantino para criar diálogo escorreito, que não distrai mas fixa e que informa sem aborrecer.

Uma Thurman tem uma presença esmagadora e os vipers revelam um carisma que torna o elenco um pedaço muito rico da história. Há uma dança eloquente entre diferentes géneros, em que o realizador honra o cinema através dos seus gostos pessoais. Tarantino não se limita a homenagear nomes e caras mas resgata mesmo glórias perdidas (David Carradine e o seu percurso passado dos filmes de acção ou a própria figura de Hattori Hanzo, figura mítica anterior a Kill Bill).

De resto, é fascinante ver as comparações, cena a cena, entre as duas partes de Kill Bill e os muitos filmes em que Tarantino se terá inspirado – por exemplo, o filme japonês Lady Snowblood (1973) e a sua influência na personagens de O-Ren; o filme chinês Executioners from Shaolin (1977), onde está o golpe mortal que A Noiva aprende; ou mesmo alguns planos dos spaghetti westerns de Leone (The Good, The Bad and The Ugly, de 1967, e Once Upon a Time in the West, de 1968). E que jeito esta incursão recente pelo mundo dos westerns

Conseguirá Quentin Tarantino continuar a surpreender neste 9.º filme que agora chega às salas de cinema? Será inesgotável essa capacidade de se inspirar na história do cinema sem cansar o espectador? Estarão Brad Pitt e Leonardo DiCaprio à altura dos actores habituais de Tarantino? (E, por falar em actores, falta dizer que Samuel L. Jackson aparece em Kill Bill: Vol. 2, ele que não podia faltar e que, apesar de aparecer de costas, nos brinda com a sua voz inconfundível.) Quentin Tarantino é um homem de fórmulas testadas. Once Upon a Time… in Hollywood vai juntar-se com distinção ao currículo brilhante de um dos melhores realizadores e argumentistas dos nossos dias.

Kill Bill: Vol. 2. Quentin Tarantino (2004)

Artigo publicado também em Sapo Mag

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