30 antes dos 30: The Truman Show

Jim Carrey em The Truman Show (1998)

And you may find yourself 
Behind the wheel of a large automobile
And you may find yourself in a beautiful house
With a beautiful wife
And you may ask yourself, well
How did I get here?

David Byrne podia ter escrito “Once in a Lifetime” para The Truman Show. Mas quase 20 anos separam a música (de 1980) do filme (de 1998).

As palavras do frontman dos Talking Heads são, contudo, certeiras e “Once in a Lifetime” acabou por ser escolhida para o trailer de The Truman Show, quase que a sugerir perguntas que o protagonista vai fazendo a si mesmo ao longo da história.

O filme é de Peter Weir e marcou a primeira aparição de Jim Carrey como um actor que podia ir além da comédia e que lhe valeu um Globo de Ouro. Por aquela altura, já levava no currículo filmes cómicos (Ace Ventura, The Mask e Dumb and Dumber), mas não tinha ainda dado a conhecer a sua faceta mais interessante. Longe de ser um drama, The Truman Show abriu horizontes à carreira de Jim Carrey, que viria a fazer depois um dos seus papéis mais brilhantes, como Andy Kaufman em Man on the Moon.

É verdade que The Truman Show deve a Jim Carrey uma grande parte do seu sucesso porque, dificilmente, outro actor poderia dar um cunho pop ao filme. Mas a história é ainda hoje apreciada por muitos, motivo de comentário de tantos outros. Estávamos em 1998. Por cá, a Expo ‘98 era o acontecimento do ano. E, em todo o mundo, o advento do novo milénio trazia marcas de modernidade instantânea, com as ligações à internet através de modems audíveis e o temível bug do ano 2000 ali tão perto.

The Truman Show acaba por ser gravado ainda com meios analógicos e vai improvisando com os recursos disponíveis, em vários momentos, apesar do forte investimento feito no filme. As filmagens decorreram numa cidade pitoresca do estado da Florida, nos EUA, usando até casas de residentes e pedindo a locais que servissem de figurantes, quando necessário.

É neste contexto que Peter Weir mostra uma história quase futurista, adornada pela mestria de Philip Glass e Burkhard Dallwitz na banda sonora. Adoptado desde que nasceu por uma produtora, Truman Burbank vive dentro de um reality show que cativa públicos em todo o mundo. A sua família, esposa e amigos são actores contratados. A sua vida é manipulada pelo criador do programa, que controla até factores atmosféricos, ordenando a entrada de um pôr-do-sol romântico ou de uma chuva dramática. Mas Truman começa a notar padrões repetitivos e presenças estranhas, até descobrir que é o protagonista involuntário de uma fachada que acreditava ser a sua vida.

A sinopse repete perguntas que a filosofia fazia há séculos e que também já tinham inspirado o mundo da televisão (com The Twilight Zone, por exemplo) Em 1998, a nova roupagem de uma questão antiga sugere um salto cronológico de algumas décadas. Não fosse o tom cómico do filme, seria impossível negar que se trata de um argumento digno de Black Mirror.

À distância de duas décadas, é incontornável o mérito deste filme por ter conseguido antecipar várias realidades com as quais coexistimos. Os reality shows já tiveram inúmeros formatos e a busca da fama a qualquer custo tornou-se familiar. A confiança com que entregamos voluntariamente as nossas vidas às redes sociais é de um controlo panóptico. Não há muitos exemplos melhores do nosso défice de atenção generalizado do que uma das cenas finais de Truman, quando o reality show acaba e alguns espectadores se apressam a procurar outro entretenimento na televisão lá de casa.

Os paralelismos continuam na base da sátira e da metáfora. As máscaras com que nos apresentamos nas nossas vidas digitais não são muito diferentes do papel desempenhado pela suposta família e círculo de amigos de Truman. Mas o protagonista ousa romper com a farsa.

Lançando o pânico atrás das câmaras, Truman Burbank parte num barco, talvez sem direcção. Resiste à tempestade encenada oportunamente mas, em vez do horizonte, chega ao fim do cenário. O criador/realizador fala-lhe, como se de Deus se tratasse, a tentar uma última manipulação. Pede-lhe que não entre no mundo real, até porque, ali, nada tem a temer. Não há motivo para ter medo.

Jim Carrey ensaia a sua catchphrase uma última vez – e com uma pausa bem dramática, digna de reality show – despede-se. “In case I don’t see ya, good afternoon, good evening and good night”. E, com uma vénia, vira costas ao que sempre conheceu, saindo pela porta do estúdio que era o seu mundo.

In case I don’t see ya, good afternoon, good evening and good night.

 

The Truman Show (1998). Peter Weir

Artigo publicado também em Sapo Mag

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